Medicamentos - Fonte: Prosimetron. |
Texto de ELIANE BRUM,
encontrado na Revista Prana
extraído da Revista Época, em 20/05/2013.
Acordei doente mental
A poderosa American
Psychiatric Association (Associação Americana de Psiquiatria – APA) lançou
neste final de semana a nova edição do que é conhecido como A “BÍBLIA DA PSIQUIATRIA”: o DSM-5.
E, de imediato, virei doente mental. Não estou sozinha. ESTÁ CADA VEZ MAIS DIFÍCIL NÃO SE ENCAIXAR EM UMA OU VÁRIAS
DOENÇAS DO MANUAL. Se uma pesquisa já mostrou que quase metade
dos adultos americanos tiveram pelo menos um transtorno psiquiátrico durante a
vida, alguns críticos renomados desta quinta edição do manual têm afirmado que
agora o número de pessoas com doenças mentais vai se multiplicar. E assim
poderemos chegar a um impasse muito, mas muito fascinante, mas também muito
perigoso: A PSIQUIATRIA
CONSEGUIRIA A FAÇANHA DE TRANSFORMAR A “NORMALIDADE” EM “ANORMALIDADE”. O
“NORMAL” SERIA SER “ANORMAL”.
A nova edição
do Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (Manual
Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) exibe mais de 300 patologias,
distribuídas por 947 páginas. Custa US$ 133,08 (com desconto) no anúncio de
pré-venda no site da Amazon. Descobri que sou doente mental ao conhecer apenas
algumas das novas modalidades, que tem sido apresentadas pela imprensa
internacional. Tenho quase todas. “Distúrbio de Hoarding”. Tenho. Caracteriza-se
pela dificuldade persistente de se desfazer de objetos ou de “lixo”,
independentemente de seu valor real. Sou assolada por uma enorme dificuldade de
botar coisas fora, de bloquinhos de entrevistas dos anos 90 a sapatos
imprestáveis para o uso, o que resulta em acúmulos de caixas pelo apartamento.
Remédio pra mim. “Transtorno Disfórico Pré-Menstrual”, que consiste numa TPM
mais severa. Culpada. Qualquer um que convive comigo está agora autorizado a me
chamar de louca nas duas semanas anteriores à menstruação. Remédio pra mim.
“Transtorno de Compulsão Alimentar Periódica”. A pessoa devora quantidades
“excessivas” de comida num período delimitado de até duas horas, pelo menos uma
vez por semana, durante três meses ou mais. Certeza que tenho. Bastaria me ver
comendo feijão, quando chego a cinco ou seis pratos fundo fácil. Mas, para não
ter dúvida, devoro de uma a duas latas de leite condensado por semana, em menos
de duas horas, há décadas, enquanto leio um livro igualmente delicioso, num
ritual que eu chamava de “momento de felicidade absoluta”, mas que, de fato,
agora eu sei, é uma doença mental. Em vez de leite condensado, remédio pra mim.
Identifiquei outras anomalias, mas fiquemos neste parágrafo gigante, para que
os transtornos psiquiátricos que me afetam não ocupem o texto inteiro.
Há uma novidade mais
interessante do que as doenças recém inventadas pela nova “Bíblia”. Seu
lançamento vem marcado por uma controvérsia sem precedentes. Se sempre houve
uma crítica contundente às edições anteriores, especialmente por parte de
psicólogos e psicanalistas, A QUINTA EDIÇÃO TEM SIDO ATACADA COM MAIS
FEROCIDADE JUSTAMENTE POR QUEM COSTUMAVA NÃO SÓ DEFENDER O MANUAL, COMO
PARTICIPAR DE SUA ELABORAÇÃO. ALGUNS NOMES RELUZENTES DA PSIQUIATRIA AMERICANA
ESTÃO, DIGAMOS, SALTANDO DO NAVIO. Como não há cordeiros
nesse campo, movido em parte pelos bilhões de dólares da indústria
farmacêutica, é legítimo perguntar: perceberam que há abusos e estão fazendo
uma “mea culpa” sincera antes que seja tarde, ou estão vendo que o navio está
adernando e querem salvar o seu nome, ou trata-se de uma disputa interna de
poder em que os participantes das edições anteriores foram derrotados por outro
grupo, ou tudo isso junto e mais alguma coisa?
Não conheço os labirintos
da APA para alcançar a resposta, mas acredito que vale a pena ficarmos atentos
aos próximos capítulos. Por um motivo acima de qualquer suspeita: O DSM INFLUENCIA NÃO SÓ A SAÚDE MENTAL NOS ESTADOS UNIDOS, MAS É O
MANUAL UTILIZADO PELOS MÉDICOS EM PRATICAMENTE TODOS OS PAÍSES, PELO MENOS OS
OCIDENTAIS, INCLUINDO O BRASIL. É TAMBÉM USADO COMO REFERÊNCIA NO SISTEMA DE
CLASSIFICAÇÃO DE DOENÇAS DA ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). É, PORTANTO, O
QUE DEFINE O QUE É SER “ANORMAL” EM NOSSA ÉPOCA – E ESTE É UM ENORME PODER.
Vale a pena sublinhar com tinta bem forte que, para cada nova patologia,
abre-se um novo mercado para a indústria farmacêutica. Esta, sim, nunca foi tão
feliz – e saudável.
O crítico mais barulhento
do DSM-5 parece ser o psiquiatra Allen Frances, que, vejam só, foi o
coordenador da quarta edição do manual, lançada em 1994. Professor emérito da
Universidade de Duke, ele tem um blog no Huffington
Post que praticamente usa apenas para detonar a nova Bíblia da
Psiquiatria. Quando a versão final do manual foi aprovada, enumerou o que
considera as dez piores mudanças da quinta edição, num texto
iniciado com a seguinte frase: “Esse é o momento mais triste nos meus
45 anos de carreira de estudo, prática e ensino da psiquiatria”. Em carta ao The New York Times, afirmou: “AS FRONTEIRAS DA PSIQUIATRIA CONTINUAM A SE EXPANDIR, A ESFERA DO
NORMAL ESTÁ ENCOLHENDO”.
Entre suas críticas mais
contundentes está o fato de o DSM-5 ter transformado o que chamou de “birra
infantil” em doença mental. A nova patologia é chamada de “Transtorno
Disruptivo de Desregulação do Humor” e atingiria crianças e adolescentes que
apresentassem episódios frequentes de irritabilidade e descontrole emocional.
No que se refere à patologização da infância, o comentário mais incisivo de
Allen Frances talvez seja este: “Nós não temos ideia de como esses novos
diagnósticos não testados irão influenciar no dia a dia da prática médica, mas
meu medo é que isso irá exacerbar e não amenizar o já excessivo e inapropriado
uso de medicação em crianças. Durante as duas últimas décadas, a psiquiatria
infantil já provocou três modismos — triplicou o Transtorno de Déficit de
Atenção, aumentou em mais de 20 vezes o autismo e aumentou em 40 vezes o
transtorno bipolar na infância. Esse campo deveria sentir-se constrangido por
esse currículo lamentável e deveria engajar-se agora na tarefa crucial de
educar os profissionais e o público sobre a dificuldade de diagnosticar as
crianças com precisão e sobre os riscos de medicá-las em excesso. O DSM-5 não
deveria adicionar um novo transtorno com o potencial de resultar em um novo
modismo e no uso ainda mais inapropriado de medicamentos em crianças
vulneráveis".
A epidemia de doenças como
TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) tem mobilizado gestores
de saúde pública, assustados com o excesso de diagnósticos e a suspeita de uso
abusivo de drogas como Ritalina, inclusive no Brasil. E motivado algumas retratações por parte
de psiquiatras que fizeram seu nome difundindo a doença. Uma reportagem do The New York Times sobre
o tema conta que o psiquiatra Ned Hallowell, autor de best-sellers sobre TDAH,
hoje arrepende-se de dizer aos pais que medicamentos como Adderall e outros
eram “mais seguros que Aspirina”. Hallowell, agora mais comedido, afirma:
“Arrependo-me da analogia e não direi isso novamente”. E acrescenta: “AGORA É O MOMENTO DE CHAMAR A ATENÇÃO PARA OS PERIGOS QUE PODEM
ESTAR ASSOCIADOS A DIAGNÓSTICOS DISPLICENTES. NÓS TEMOS CRIANÇAS LÁ FORA USANDO
ESSAS DROGAS COMO ANABOLIZANTES MENTAIS – ISSO É PERIGOSO E EU ODEIO PENSAR QUE
DESEMPENHEI UM PAPEL NA CRIAÇÃO DESSE PROBLEMA”. No
DSM-5, a idade limite para o aparecimento dos primeiros sintomas de TDAH foi
esticada dos 7 anos, determinados na versão anterior, para 12 anos, aumentando
o temor de uma “hiperinflação de diagnósticos”.
Pensar sobre a controvérsia
gerada pelo nova “Bíblia da Psiquiatria” é pensar sobre algumas construções
constitutivas do período histórico que vivemos. CONSTRUÇÕES CULTURAIS
QUE DIZEM QUEM SOMOS NÓS, OS HOMENS E MULHERES DESSA ÉPOCA. A COMEÇAR PELO FATO
DE DARMOS A UM GRUPO DE PSIQUIATRAS O PODER – INCOMENSURÁVEL – DE DEFINIR O QUE
É SER “NORMAL”. E ASSIM INTERFERIR DIRETA E INDIRETAMENTE NA VIDA DE TODOS,
assim como nas políticas governamentais de saúde pública, com consequências e implicações
que ainda precisam ser muito melhor analisadas e compreendidas. Sem esquecer,
em nenhum momento sequer, que a definição das doenças mentais está
intrinsicamente ligada a uma das indústrias mais lucrativas do mundo atual.
PARTE DOS ORGANIZADORES
NÃO GOSTA QUE O MANUAL SEJA CHAMADO DE “BÍBLIA”. MAS, DE FATO, É O QUE ELE TEM
SIDO, NA MEDIDA EM QUE UMA PARCELA SIGNIFICATIVA DOS PSIQUIATRAS DO MUNDO
OCIDENTAL TRATA OS VERBETES COMO DOGMAS, ALTERANDO A VIDA DE MILHÕES DE PESSOAS
A PARTIR DO QUE NÃO DEIXA DE SER UM TIPO DE CRENÇA.
Talvez seja em parte por isso que o diretor do National Institute of
Mental Health (Instituto Nacional de Saúde Mental – NIMH), possivelmente a
maior organização de pesquisa em saúde mental do mundo, tenha anunciado o
distanciamento da instituição das categorias do DSM-5. THOMAS INSEL ESCREVEU EM SEU BLOG QUE O DSM NÃO É UMA BÍBLIA, MAS NO
MÁXIMO UM “DICIONÁRIO”: “A FRAQUEZA (DO DSM) É SUA FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. SEUS
DIAGNÓSTICOS SÃO BASEADOS NO CONSENSO SOBRE GRUPOS DE SINTOMAS CLÍNICOS, NÃO EM
QUALQUER AVALIAÇÃO OBJETIVA EM LABORATÓRIO. (...) OS PACIENTES COM DOENÇAS
MENTAIS MERECEM ALGO MELHOR”. O NIMH iniciou um projeto
para a criação de um novo sistema de classificação, incorporando investigação
genética, imagens, ciência cognitiva e “outros níveis de informação” – o que
também deve gerar controvérsias.
A polêmica em torno do
DSM-5 é uma boa notícia. E torço para que seja apenas o início de um debate
sério e profundo, que vá muito além da medicina, da psicologia e da ciência.
“Há pelo menos 20 anos tem se tratado como doença mental quase todo tipo de
comportamento ou sentimento humano”, disse a psicóloga Paula Caplan à BBC
Brasil. Ela afirma ter participado por dois anos da elaboração da edição
anterior do manual, antes de abandoná-la por razões “éticas e profissionais”,
assim como por ter testemunhado “distorções em pesquisas”. Escreveu um livro
com o seguinte título: “Eles dizem que você é louco: como os psiquiatras mais
poderosos do mundo decidem quem é normal”.
A VIDA TORNOU-SE UMA
PATOLOGIA. E TUDO O QUE É DA VIDA PARECE TER VIRADO SINTOMA DE UMA DOENÇA
MENTAL. Talvez o exemplo mais emblemático da
quinta edição do manual seja a forma de olhar para o luto. Agora, quem perder
alguém que ama pode receber um diagnóstico de depressão. Se a tristeza e outros
sentimentos persistirem por mais de duas semanas, há chances de que um médico
passe a tratá-los como sintomas e faça do luto um transtorno mental. Em vez de
elaborar a perda – com espaço para vivê-la e para, no tempo de cada um, dar um
lugar para essa falta que permita seguir vivendo –, a pessoa terá sua dor
silenciada com drogas. É preciso se espantar – e se espantar muito.
Vale a pena olhar pelo
avesso: quem são essas pessoas que acham que o “normal” é superar a perda de
uma mãe, de um pai, de um filho, de um companheiro rapidamente? Que tipo de ser
humano consegue essa proeza? Quem seríamos nós se precisássemos de apenas duas
semanas para elaborar a dor por algo dessa magnitude? Talvez o DSM-5 diga mais
dos psiquiatras que o organizaram do que dos pacientes.
Há ainda mais uma
consequência cruel, que pode provocar muito sofrimento. Ao transformar o que é
da vida em doença mental, os defensores dessa abordagem estão desamparando as
pessoas que realmente precisam da sua ajuda. Aquelas que efetivamente podem ser
beneficiadas por tratamento e por medicamentos. Se quase tudo é patologia,
torna-se cada vez mais difícil saber o que é, de fato, patologia. Por sorte, há
psiquiatras éticos e competentes que agem com consciência em seus consultórios.
Mas sempre foi difícil em qualquer área distinguir-se da manada – e mais ainda
nesta área, que envolve o assédio sedutor, lucrativo e persistente dos laboratórios.
Se as consequências não
fossem tão nefastas, seria até interessante. Ao considerar que quase tudo é
“anormal”, os organizadores do manual poderiam estar chegando a uma concepção
filosófica bem libertadora. A de que, como diria Caetano Veloso, “de perto
ninguém é normal”. E não é mesmo, o que não significa que seja doente mental
por isso e tenha de se tornar um viciado em drogas legais para ser aceito. SÓ SE PODE COMPREENDER AS ESCOLHAS DE ALGUÉM A PARTIR DO SENTIDO
QUE AS PESSOAS DÃO ÀS SUAS ESCOLHAS. E NÃO HÁ DOIS SENTIDOS IGUAIS PARA A MESMA
ESCOLHA, NA MEDIDA EM QUE NÃO EXISTEM DUAS PESSOAS IGUAIS. A BELEZA DO HUMANO É
QUE AQUILO QUE NOS UNE É JUSTAMENTE A DIFERENÇA. SOMOS IGUAIS PORQUE SOMOS
DIFERENTES.
Esse debate não pertence
apenas à medicina, à psicologia e à ciência, ou mesmo à economia e à política.
É preciso quebrar os monopólios sobre essa discussão, para que se torne um
debate no âmbito abrangente da cultura. É DE COMPREENDER QUEM
SOMOS E COMO CHEGAMOS ATÉ AQUI QUE SE TRATA. E TAMBÉM DE QUEM QUEREMOS SER. A
DEFINIÇÃO DO QUE É “NORMAL” E “ANORMAL” – OU A DEFINIÇÃO DE QUE É PRECISO TER
UMA DEFINIÇÃO – É UMA CONSTRUÇÃO CULTURAL. E nos envolve a todos. Que
cada vez mais as definições sobre normalidade/anormalidade sejam monopólios da
psiquiatria e uma fonte bilionária de lucros para a indústria farmacêutica é um
dado dos mais relevantes – mas está longe de ser tudo.
E não, eu não acordei
doente mental. Só teria acordado se permitisse a uma Bíblia – e a pastores de
jaleco – determinar os sentidos que construo para a minha vida.
Obrigado, Eliane.
Alisson Batista
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