O Homem vitruviano. Fonte: The Worlds of Leonardo da Vinci. |
Descontentamento
O sucesso não constitui um fim em si mesmo. No
entanto, para a sociedade e para homens completamente limitados pelos
horizontes sociais, o cumprimento eficiente das responsabilidades de um cargo
(ou ministério) por seu detentor geralmente pode ser considerado como uma
conclusão satisfatória de um ciclo de experiência individual. Sob a ótica
coletivista, o indivíduo, tendo atingido a posição em que possa melhor servir a
comunidade, passa a estar, daí por diante, completamente identificado com essa
posição. Absorvido em seu trabalho e por seu trabalho, a pessoa plenamente
socializada não deve ter outra preocupação além de levar a sociedade, mediante
sua tarefa cotidiana, a uma condição de plenitude e felicidade cada vez
maiores. Ela se transforma literalmente numa “célula” de um organismo mais
vasto, e perde-se como indivíduo característico. Como unidade produtiva
perfeitamente eficaz – uma unidade de trabalho – ela encontra sua própria
realização na felicidade comunal de sua sociedade.
Nesse paraíso coletivista o valor do eu individual
dissolve-se na vasta maré da evolução humana. Um pólo da existência humana teve
sua atividade reduzida ao mínimo; da mesma forma que o outro pólo – o homem
como ser coletivo – é quase de todo repudiado ou esquecido no paraíso
individualista. Os dois extremos levam ao automatismo e à petrificação dos
valores; e, a longo prazo, à rebelião.
Progresso criativo para a humanidade e para cada
homem significa a constante expansão de valores; não a expansão de mecanismos
sociais nem a de egos individuais. Valores e significados precisam crescer em
amplitude, extensão, profundidade e altura. Devem crescer eternamente em termos
de abrangência, a fim de que a vida repita muitas vezes seu triunfo sobre a
morte e para que o espírito se renove ciclicamente através de integrações de
ser cada vez mais vastas. O crescimento de valor e significado requer a
transformação gradativa de todas as formas que sustentaram o sentido de valor e
a busca de significado focalizados dentro dos limites de modelos estabelecidos
de pensamento, sentimento e comportamento.
Quem é que despreza a bem-aventurança social ou o
conforto individual, e inicia febrilmente a busca de algo situado mais além,
que importa em dor, angústia e revolução?
É o indivíduo em quem surgiram novas forças e uma
nova visão, que as formas coletivas e as tradições sociais não poderiam conter;
e, não as podendo conter, se reprimiram ou isolaram contra elas. É o indivíduo
cuja receptividade para o incessante fluxo criativo da vida lhe tornou
impossível isolar-se contra seja o que for que está vivendo e palpitando e
dar-se por satisfeito com os conteúdos reconhecidos e coletivamente autorizados
de uma personalidade social respeitável. É o indivíduo que prefere antes estar
eternamente vazio e à procura, do que amarrar-se a receitas rígidas de
plenitude e de contentamento.
Devem surgir no zênite de uma era indivíduos que
recusem ser tolhidos pelos limites sociais de um sucesso padronizado e
satisfeito com os conteúdos do tipo humano gerado por sua sociedade e cultura.
Neles queima o fogo do “descontentamento divino”. Do descontentamento à
rebelião, estes grandes iconoclastas – quebradores de normas e destruidores de
ídolos – movem incansavelmente, ou talvez de modo sutil, suas cruzadas contra
um sentido imbecil de plenitude e de harmonia social epidérmica. Eles esfacelam
a crosta da respeitabilidade. Solapam todas as muralhas fortificadas e
dilaceram o afetado contentamento das almas que nada contêm senão agonia ou
lembranças mortas. São explosões de repulsa emocional ou de fervor apaixonado.
Eles se fazem tragicamente vazios, a fim de que um novo sentido de plenitude
possa advir das profundezas psíquicas e mentais escancaradas para os grandes
impulsos que impelem as almas às aventuras sem fim, à procura do ouro ou à
procura de Deus.
Esses homens são eternos insatisfeitos. Eles celebram
no ritual revolucionário cujo deus é o Descontentamento, e cuja hóstia sagrada
é a morte do reformador. Para eles, não pode haver plenitude onde tantos
precisam viver vidas vazias no lado sombrio da sociedade e da cultura. Como
podem conhecer a satisfação onde milhões padecem fome?
Eles também estão esfaimados de uma terrível,
implacável fome – fome de amor, talvez, para além das filigranas das emoções
socializadas; fome de Deus, que exorbita as religiões satisfeitas de suas
virtudes conscientes e de seus Apocalipses patenteados; fome do “Homem” – o
alvo eternamente em retrocesso da civilização sempre trôpega sob o fardo dos
“bons” homens que abominam o “melhor” muito mais do que abominam o mal.
Para esses indivíduos que sentiram as agruras do
descontentamento essencial, também há uma grande prova: A que fim farão servir esse descontentamento? Eles
tiveram sua realização, e nessa realização acharam o vazio. Demonstraram seu
valor social como indivíduos; mas isso lhes pareceu indigno, porque fictício –
morto, porque isolado em oposição a toda nova vida. Então, o que dizer a isto?
Haverão de dramatizar a própria insatisfação e incessantemente intoxicar a
todos com sua fome? Gesticularão e gritarão sua revolta, empurrarão para o lado
toda restrição e, quais românticos poetas e “almas malditas”, forçarão a
sociedade a ver neles a própria sombra de sua respeitabilidade, as pustulentas
ulcerações que mascara com morais e com disfarces? Ou bem usarão seu poder e
autoridade, ou qualquer posição social que lhes calhe, para impelir ao ponto de
ruptura os círculos viciosos da tradição, de modo que esses círculos, sempre
reiterados em monótono automatismo pelos homens bons, se convertam em espirais,
cada vez mais abertas ao espírito criador?
Produzir eficientemente o que a sociedade está
acostumada a aceitar – com insuficientes variações originais para estimular o
interesse e fazer face à concorrência – dá a um homem amigos, honrarias e tudo
quanto decorre do conforto e contentamento social. Transformar e regenerar o
costume e a tradição é tarefa ingrata, mesmo para o mais capaz e prudente. E
renovar-se a si mesmo através da condução de uma vida de responsabilidade
social e de liderença é trabalho que requer a maior vigilância e a mais
inabalável determinação, bem como um vigor elástico de caráter e de espírito.
O problema essencial, porém, deve ser enfrentado em
outro nível. Para transformar um círculo em espiral é preciso aplicar-lhe uma
força centrífuga constante. Em todos os pontos, o espaço
deve vencer o centro; a atração da
Galáxia (a companhia das estrelas) deve sempre triunfar sobre o poder
gravitacional do Sol; o desejo de inclusividade deve suscitar conteúdos novos
(e a princípio mal acolhidos) no interior das estruturas da sociedade e da
personalidade.
Essas estruturas devem desfazer-se daquilo que é
obsoleto a fim de admitir o ingresso da novidade turbulenta e assustadora dos
espaços “excêntricos”. Abandonar velhos conteúdos é experimentar
descontentamento. Abrir-se para uma nova substância num ato de criatividade
abrangente e de receptividade positiva voltada para o espaço é experimentar
alegria. A alegria nasce do descontentamento; a felicidade é a essência da
realização dentro da forma.
Aqui também o correto equilíbrio entre espaço e
centro, entre descontentamento, que é pai da criatividade, e a
estabilidade-na-forma, que dá origem à felicidade, é a única chave para o
desenvolvimento harmonioso. Uma ênfase no individualismo leva ao crescente
descontentamento entre os homens; a inflexível estabilidade coletiva de uma
sociedade planejada – por exemplo, a da Índia dos brâmanes anterior ao século
VI a.C. – leva a uma maior felicidade social, mas, igualmente, à estagnação do
espírito. Onde quer que haja desenvolvimento real, numa personalidade ou numa
sociedade, este desafio criativo tem sido eficaz. Sem ele, só pode haver ossificação,
automatismo e o círculo vicioso do hábito.
Há, não obstante, duas alternativas. Se o círculo do
desempenho social tiver grande vitalidade, ele poderá transformar-se em espiral
sem perder a forma e a proporção harmoniosa; do contrário, poderá ziguezaguear
em acessos distorcidos, asism como indivíduos explosivos ou massas
revolucionárias vencem pela violência o ímpeto de uma vida incrustada em
hábitos inflexíveis e no formalismo amedrontado. No primeiro caso, o elemento
de significação é conservado vivo mediante renovações periódicas; no segundo,
as significações petrificadas e os símbolos ou categorias sociais opressivos,
tendo-se tornado quebradiços pelo culto automático de um povo escravizado,
também perderam a capacidade de transformação interna. Precisam ser
despedaçados, ou, quando nada, renovados implacavelmente.
Onde quer que permaneça a forma, pode também haver
significado. A destruição ou a temporária obliteração da forma tem por
consequência inevitável a perda de significado. Mas forma não é formalismo;
consistência não implica rigidez; harmonia comunal não requer necessariamente a
negação da liberdade do indivíduo e a supressão dos espíritos rebeldes que
incorporam a vontade de penetrar espaços mais vastos e atingir uma
inclusividade maior. A espiral constitui a forma perfeita, não o círculo; e a
espiral resulta da integração de uma liberação do espírito de dentro para fora
e um movimento circular. Essa integração é Vida, na evolução universal e em
significado cósmico.
A maioria dos homens colhe com a sociedade os frutos
dos processos sociais produtivos; só uns poucos, impelidos por um
descontentamento interior, estão prontos a incendiar essa colheita de modo que,
por consequência, seja liberado o poder para novas aventuras. Suas vidas são
Adventos perpétuos; suas mentes, piras funerárias de onde ressurge a Fênix,
símbolo da imortalidade. Eles são os que “abalam e movimentam” o destino
humano, os Espíritos Prometéicos que levam “fogo” aos homens apaixonados pelas
“sementes” e unicamente empenhados no cultivo delas. Deles é o ritmo do fogo, a
fome eterna da chama. A sociedade os agrilhoa, tortura-os – enquanto a
rapacidade cúpida incessantemente se regala com os poderes que eles liberaram e
com a riqueza que criaram – deixando-os vazios e exangues.
E no entanto, eles são Vitoriosos. Iluminadas por sua
luz, novas gerações desenvolvem mentes mais amplas. Nascem novas sociedades.
Sonhando com eles, os jovens se aventuram rumo a grandiosos espaços
constelados.
Tríptico Astrológico, D. R.
LEIA TAMBÉM:
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Você pode construir ou destruir com o uso da palavra. Pense em sua responsabilidade individual ao utilizá-la.