domingo, 1 de março de 2015

O ESPAÇO DO SIGNO DE AQUÁRIO VI


O Homem vitruviano. Fonte: The Worlds of Leonardo da Vinci.

Descontentamento

O sucesso não constitui um fim em si mesmo. No entanto, para a sociedade e para homens completamente limitados pelos horizontes sociais, o cumprimento eficiente das responsabilidades de um cargo (ou ministério) por seu detentor geralmente pode ser considerado como uma conclusão satisfatória de um ciclo de experiência individual. Sob a ótica coletivista, o indivíduo, tendo atingido a posição em que possa melhor servir a comunidade, passa a estar, daí por diante, completamente identificado com essa posição. Absorvido em seu trabalho e por seu trabalho, a pessoa plenamente socializada não deve ter outra preocupação além de levar a sociedade, mediante sua tarefa cotidiana, a uma condição de plenitude e felicidade cada vez maiores. Ela se transforma literalmente numa “célula” de um organismo mais vasto, e perde-se como indivíduo característico. Como unidade produtiva perfeitamente eficaz – uma unidade de trabalho – ela encontra sua própria realização na felicidade comunal de sua sociedade.

Nesse paraíso coletivista o valor do eu individual dissolve-se na vasta maré da evolução humana. Um pólo da existência humana teve sua atividade reduzida ao mínimo; da mesma forma que o outro pólo – o homem como ser coletivo – é quase de todo repudiado ou esquecido no paraíso individualista. Os dois extremos levam ao automatismo e à petrificação dos valores; e, a longo prazo, à rebelião.

Progresso criativo para a humanidade e para cada homem significa a constante expansão de valores; não a expansão de mecanismos sociais nem a de egos individuais. Valores e significados precisam crescer em amplitude, extensão, profundidade e altura. Devem crescer eternamente em termos de abrangência, a fim de que a vida repita muitas vezes seu triunfo sobre a morte e para que o espírito se renove ciclicamente através de integrações de ser cada vez mais vastas. O crescimento de valor e significado requer a transformação gradativa de todas as formas que sustentaram o sentido de valor e a busca de significado focalizados dentro dos limites de modelos estabelecidos de pensamento, sentimento e comportamento.

Quem é que despreza a bem-aventurança social ou o conforto individual, e inicia febrilmente a busca de algo situado mais além, que importa em dor, angústia e revolução?

É o indivíduo em quem surgiram novas forças e uma nova visão, que as formas coletivas e as tradições sociais não poderiam conter; e, não as podendo conter, se reprimiram ou isolaram contra elas. É o indivíduo cuja receptividade para o incessante fluxo criativo da vida lhe tornou impossível isolar-se contra seja o que for que está vivendo e palpitando e dar-se por satisfeito com os conteúdos reconhecidos e coletivamente autorizados de uma personalidade social respeitável. É o indivíduo que prefere antes estar eternamente vazio e à procura, do que amarrar-se a receitas rígidas de plenitude e de contentamento.

Devem surgir no zênite de uma era indivíduos que recusem ser tolhidos pelos limites sociais de um sucesso padronizado e satisfeito com os conteúdos do tipo humano gerado por sua sociedade e cultura. Neles queima o fogo do “descontentamento divino”. Do descontentamento à rebelião, estes grandes iconoclastas – quebradores de normas e destruidores de ídolos – movem incansavelmente, ou talvez de modo sutil, suas cruzadas contra um sentido imbecil de plenitude e de harmonia social epidérmica. Eles esfacelam a crosta da respeitabilidade. Solapam todas as muralhas fortificadas e dilaceram o afetado contentamento das almas que nada contêm senão agonia ou lembranças mortas. São explosões de repulsa emocional ou de fervor apaixonado. Eles se fazem tragicamente vazios, a fim de que um novo sentido de plenitude possa advir das profundezas psíquicas e mentais escancaradas para os grandes impulsos que impelem as almas às aventuras sem fim, à procura do ouro ou à procura de Deus.

Esses homens são eternos insatisfeitos. Eles celebram no ritual revolucionário cujo deus é o Descontentamento, e cuja hóstia sagrada é a morte do reformador. Para eles, não pode haver plenitude onde tantos precisam viver vidas vazias no lado sombrio da sociedade e da cultura. Como podem conhecer a satisfação onde milhões padecem fome?

Eles também estão esfaimados de uma terrível, implacável fome – fome de amor, talvez, para além das filigranas das emoções socializadas; fome de Deus, que exorbita as religiões satisfeitas de suas virtudes conscientes e de seus Apocalipses patenteados; fome do “Homem” – o alvo eternamente em retrocesso da civilização sempre trôpega sob o fardo dos “bons” homens que abominam o “melhor” muito mais do que abominam o mal.

Para esses indivíduos que sentiram as agruras do descontentamento essencial, também há uma grande prova: A que fim farão servir esse descontentamento? Eles tiveram sua realização, e nessa realização acharam o vazio. Demonstraram seu valor social como indivíduos; mas isso lhes pareceu indigno, porque fictício – morto, porque isolado em oposição a toda nova vida. Então, o que dizer a isto? Haverão de dramatizar a própria insatisfação e incessantemente intoxicar a todos com sua fome? Gesticularão e gritarão sua revolta, empurrarão para o lado toda restrição e, quais românticos poetas e “almas malditas”, forçarão a sociedade a ver neles a própria sombra de sua respeitabilidade, as pustulentas ulcerações que mascara com morais e com disfarces? Ou bem usarão seu poder e autoridade, ou qualquer posição social que lhes calhe, para impelir ao ponto de ruptura os círculos viciosos da tradição, de modo que esses círculos, sempre reiterados em monótono automatismo pelos homens bons, se convertam em espirais, cada vez mais abertas ao espírito criador?

Produzir eficientemente o que a sociedade está acostumada a aceitar – com insuficientes variações originais para estimular o interesse e fazer face à concorrência – dá a um homem amigos, honrarias e tudo quanto decorre do conforto e contentamento social. Transformar e regenerar o costume e a tradição é tarefa ingrata, mesmo para o mais capaz e prudente. E renovar-se a si mesmo através da condução de uma vida de responsabilidade social e de liderença é trabalho que requer a maior vigilância e a mais inabalável determinação, bem como um vigor elástico de caráter e de espírito.


O problema essencial, porém, deve ser enfrentado em outro nível. Para transformar um círculo em espiral é preciso aplicar-lhe uma força centrífuga constante. Em todos os pontos, o espaço deve vencer o centro; a atração da Galáxia (a companhia das estrelas) deve sempre triunfar sobre o poder gravitacional do Sol; o desejo de inclusividade deve suscitar conteúdos novos (e a princípio mal acolhidos) no interior das estruturas da sociedade e da personalidade.

Essas estruturas devem desfazer-se daquilo que é obsoleto a fim de admitir o ingresso da novidade turbulenta e assustadora dos espaços “excêntricos”. Abandonar velhos conteúdos é experimentar descontentamento. Abrir-se para uma nova substância num ato de criatividade abrangente e de receptividade positiva voltada para o espaço é experimentar alegria. A alegria nasce do descontentamento; a felicidade é a essência da realização dentro da forma.

Aqui também o correto equilíbrio entre espaço e centro, entre descontentamento, que é pai da criatividade, e a estabilidade-na-forma, que dá origem à felicidade, é a única chave para o desenvolvimento harmonioso. Uma ênfase no individualismo leva ao crescente descontentamento entre os homens; a inflexível estabilidade coletiva de uma sociedade planejada – por exemplo, a da Índia dos brâmanes anterior ao século VI a.C. – leva a uma maior felicidade social, mas, igualmente, à estagnação do espírito. Onde quer que haja desenvolvimento real, numa personalidade ou numa sociedade, este desafio criativo tem sido eficaz. Sem ele, só pode haver ossificação, automatismo e o círculo vicioso do hábito.

Há, não obstante, duas alternativas. Se o círculo do desempenho social tiver grande vitalidade, ele poderá transformar-se em espiral sem perder a forma e a proporção harmoniosa; do contrário, poderá ziguezaguear em acessos distorcidos, asism como indivíduos explosivos ou massas revolucionárias vencem pela violência o ímpeto de uma vida incrustada em hábitos inflexíveis e no formalismo amedrontado. No primeiro caso, o elemento de significação é conservado vivo mediante renovações periódicas; no segundo, as significações petrificadas e os símbolos ou categorias sociais opressivos, tendo-se tornado quebradiços pelo culto automático de um povo escravizado, também perderam a capacidade de transformação interna. Precisam ser despedaçados, ou, quando nada, renovados implacavelmente.

Onde quer que permaneça a forma, pode também haver significado. A destruição ou a temporária obliteração da forma tem por consequência inevitável a perda de significado. Mas forma não é formalismo; consistência não implica rigidez; harmonia comunal não requer necessariamente a negação da liberdade do indivíduo e a supressão dos espíritos rebeldes que incorporam a vontade de penetrar espaços mais vastos e atingir uma inclusividade maior. A espiral constitui a forma perfeita, não o círculo; e a espiral resulta da integração de uma liberação do espírito de dentro para fora e um movimento circular. Essa integração é Vida, na evolução universal e em significado cósmico.

A maioria dos homens colhe com a sociedade os frutos dos processos sociais produtivos; só uns poucos, impelidos por um descontentamento interior, estão prontos a incendiar essa colheita de modo que, por consequência, seja liberado o poder para novas aventuras. Suas vidas são Adventos perpétuos; suas mentes, piras funerárias de onde ressurge a Fênix, símbolo da imortalidade. Eles são os que “abalam e movimentam” o destino humano, os Espíritos Prometéicos que levam “fogo” aos homens apaixonados pelas “sementes” e unicamente empenhados no cultivo delas. Deles é o ritmo do fogo, a fome eterna da chama. A sociedade os agrilhoa, tortura-os – enquanto a rapacidade cúpida incessantemente se regala com os poderes que eles liberaram e com a riqueza que criaram – deixando-os vazios e exangues.

E no entanto, eles são Vitoriosos. Iluminadas por sua luz, novas gerações desenvolvem mentes mais amplas. Nascem novas sociedades. Sonhando com eles, os jovens se aventuram rumo a grandiosos espaços constelados.

Tríptico Astrológico, D. R.

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