O Faraó e os Hicsos. Fonte: Wikipedia. |
Camaradagem
A condição de viver em sociedade é, segundo cremos,
natural aos seres humanos; não obstante, o desenvolvimento de uma consciência
verdadeiramente social é
gradativo, tanto em termos do desenvolvimento histórico das comunidades humanas
como com referência ao lento desdobramento da mentalidade da criança e do
adolescente. O que vem primeiro é o desenvolvimento de uma consciência pessoal que se baseia nos impulsos instintivos e
nas experiências biológico-genéricas. Essa fase corresponde à primeira metade
da sequência dos signos do zodíaco., de Áries a Virgem – sendo Virgem uma fase
de reajustamento e de metamorfoses críticas.
Vemos a primeira percepção disso durante a fase de
Libra do desenvolvimento, como a união simbólica de mãos.
Em escorpião, a união de corações e de poderes criativos é a substância de um novo âmbito de
experiência; ao passo que, em Sagitário, os homens atingem a fase da união de mentes. A consciência social encontra seu próprio
campo de operação, e a civilização emerge da natureza. Dentro da estrutura da
lógica, os conceitos são abstraídos das percepções – assim como o vinho e
outros produtos inebriantes são extraídos dos frutos da escura terra, obtida
sua fermentação dentro de resistentes tonéis.
Os conceitos, as ideias e os sistemas filosóficos
abstratos são a quintessência das experiências generalizadas. Eles são
possibilitados pela criação da linguagem, de palavras que detêm e liberam o
poder gerado pelas reações dos homens a suas experiências comuns. Através de
palavras, os resultados da experiência tornam-se transferíveis. Essas palavras possibilitam a comunicação
entre homens que não estão imediatamente preocupados com fatos específicos de
seu ambiente. Acima de tudo, a linguagem – sobretudo depois de registrada –
torna-se o meio de “ligar o tempo” (Korzybsky) e de vencer a morte. A
comunicação entre gerações sucessivas, assim como entre homens de terras
distantes, é possibilitada. As civilizações se desenvolvem, caracterizadas por
uma constante e insistente premência de ligar os mais distantes fatores da
experiência humana, mesmo aqueles que ainda se achem envoltos pela matriz do
futuro imaginário.
Essa preocupação com o que está distante, com o
futuro e com o abstrato constitui a marca da civilização, no sentido mais
estrito do termo. A civilização é necessariamente a vitória sobre a natureza,
porque a natureza é sempre absorvida em ação e reação imediatas; é localizada e
pessoal. Mesmo onde uma ação natural é repetida com frequência, cada repetição,
não obstante, atinge a consciência do ser puramente “natural” como um fenômeno
novo e ímpar. Isso confere vitalidade à sua execução – uma espécie de desafio
de vida e de morte – mas liga ao particular; os resultados da experiência
“natural” não se podem transferir verbalmente ou abstratamente, salvo através
da memória de feitos extraordinários.
A civilização, por outro lado, diz respeito à
essência transferível das experiências, àqueles fatores que escapam à
determinação temporal e ao caráter ímpar dos fatos sui-generis. A civilização é a organização de
generalidades e de valores universais. É a comum humanidade do homem guindada
ao nível da consciência e da significação, formulada em símbolos que são
significativos onde quer que os seres humanos vivam e experimente o mundo da
realidade total.
O caráter universalista e intemporal da civilização
tem, no entanto, possibilidades negativas. Uma limitação imposta à civilização
é seu próprio desafio às limitações. O fato de que ela diz respeito à universais torna-a potencialmente destrutiva da saúde
e sanidade de indivíduos específicos.
Sua intemporalidade torna-a impotente e em desintegração sempre que esteja em
pauta o núcleo vivo da experiência de um indivíduo. O caráter transferível de
seus valores, padrões e conquistas torna-os inadequados em qualquer relação com
ocasiões ímpares na vida de indivíduos isoladamente considerados. Dado que se
ajustam em toda parte, em qualquer época, eles não tocam, em parte alguma e em
nenhuma ocasião, aquele centro de realidade na pessoa individualizada que é
vivificado pelo espírito.
O espírito, em sua expressão mais profunda, diz
respeito a pessoas individuais, a
um meio individual de enfrentar necessidades específicas. Ele fala a seres humanos que tenham dado um sentido à sua
humanidade. Ele fala dentro da alma. É o Uno falando a um uno. Todas as
transferências condicionadas pelo espírito provêm da unicidade de outro ser. A
substância da transferência pertence a todos; ela é universal. Mas o ato vivo
da transferência é de indivíduo para indivíduo. Não há fecundação em tubos de ensaio nos domínios do espírito! O
dom do poder deífico não admite padronização. É dom pessoal – por mais
impessoal seja sua substância e a virtude concedida.
É realmente fácil para o civilizador e universalista
esquecer que as ideias mais exaltadas ou mais válidas devem sempre atingir o
fulcro das experiências dos indivíduos, para serem vitais e espiritualmente
radiantes. Para aqueles que, deste modo, se esquecessem da humanidade das pessoas
a que procuram converter a alguma visão grandiosa (ou não tão grandiosa) por
qualquer meio disponível, o dom mais essencial que o espírito pode oferecer é o
da camaradagem.
A camaradagem é a prática do viver cooperador e
caloroso com outros seres humanos tratados como seres humanos. É a arte de
viver em companhia – com ênfase na palavra “viver”. Ser camarada de outros
indivíduos é encará-los em termos de suas necessidades e de seus caracteres
individuais, no nível não de abstrações ou de convicções dogmáticas mas do
viver concreto, efetivo, cotidiano.
Os homens que vivem juntos dentro de um espaço
confinado precisam aprender a considerar uns aos outros com respeito e
tolerância essenciais. Mais do que qualquer outra coisa, eles precisam
considerar uns aos outros como seres humanos, e não como autômatos guiados por princípios ou dogmas abstratos,
repetindo cegamente palavras, ideias e gestos. Eles precisam aprender a
compreender-se uns aos outros como pessoas individuais, não como servos de
alguma Causa social ou de um Deus zeloso e de seus sacerdotes.
A verdadeira camaradagem opera ao nível em que o
fanatismo e a estreita intolerância não podem existir. Opera onde todos os
relacionamentos podem ser simples, diretos e ricos com uma imediação de
resposta aos sentimentos humanos e às necessidades individuais. O verdadeiro
camarada é a pessoa capaz de se defrontar, a qualquer momento, com aqueles que
comungam de suas atividades e de seu “espaço vital” como se eles sempre fossem
novos para ele, sempre vibrantes de uma fresca vitalidade, com facetas
exclusivas de humanidade, com visões significativas e respostas energizantes ao
desafio da vida em comum.
A camaradagem é, ao mesmo tempo, o ápice da
consciência social e o antídoto espiritual contra os aspectos negativos de uma
sociedade ultracivilizada.
É particularmente o grande dom do espírito a quem
estiver cheio da intensidade impessoal, do fanatismo ou da desumana eficiência,
tão amiúde associados ao tipo de comportamento e de consciência representado
por Sagitário. O tipo sagitariano de pessoa pode ser, por vezes, jovial e amigo
de atividades ao ar livre; mas, em grande número de casos, essas
características expansivas e sociais ocultam um teimoso impulso no sentido da
conquista de resultados sociais, religiosos ou administrativos a expensas dos
valores pessoais e humanos. As metas sociais são tidas como mais importantes
que o bem-estar e a liberdade dos indivíduos. As abstrações (ou mesmo as
verbalizações e as fórmulas) recebem maior proeminência do que os seres
humanos. Um líder religioso pode estar disposto a destruir personalidades a fim
de “salvar suas almas” de acordo com seu conceito de salvação e
espiritualidade. Uma nação é preservada, mas milhões no seio dela morrem e
padecem fome. Crianças asiáticas abandonadas são resgatadas através de milhares
de milhas de água, mas a favela a apenas uma quadra de nós é tida como parte
natural de um sistema social tradicional.
É esse o preço da civilização e da busca incansável
do homem do Ocidente daquilo que está sempre mais além: a busca sagitariana de
Deus – ou de ouro. O período medieval conheceu bem essa tradição do mais além.
Seus conquistadores e seus Inquisidores vieram principalmente de uma terra
sagitariana, a Espanha. Buscando a Deus, eles destruíram valores humanos.
Sonhando com a vida espiritual, eles torturaram seus próprios corpos e torceram
sua humanidade essencial. E hoje, de modo geral, também nós esquecemos o
significado dos contatos humanos mais simples e mais imediatos, seja em nossas
cidades, em nossos exércitos ou em nossos lares.
Cabe a nós nos tornarmos adeptos da arte de viver em
companhia como camaradas e amigos. Compete-nos, nos albores da época da
civilização global e das bombas atômicas, radiar em nossa vidas cotidianas o
amor, o grande amor dos camaradas; pois por mais longe que a mente do homem
paire, é o coração e o amor dos seres humanos o que representa o indestrutível
fundamento dos amanhãs criativos. A camaradagem é a substância vital de toda
civilização fiel ao espírito. Ela é o cântico Divino no centro dos
relacionamentos humanos.
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