Cruz. Fonte: Blog Timonha notícias. |
Reincorporação
O problema com que se defronta todo indivíduo ao
procurar vencer os estreitos limites, as prevenções e a exclusividade de uma
atitude egocêntrica ou centrada no ego só pode ser compreendido em sua
verdadeira natureza se a validade dos próprios termos autocentrado e egocêntrico
for posta em dúvida, e se o ego (ou eu pessoal) for entendido como sendo, na
prática e em concreta realidade, uma estrutura psíquica, mais do que um sujeito misterioso.
O uso familiar de adjetivos como egocêntrico e
autocentrado, juntamente com a definição de Carl Jung do ego como o “centro do
meu campo de consciência”, tende quase inevitavelmente a fazer o ego parecer um
ponto ou um núcleo; mais ou menos como um rei todo-poderoso e autocrático é o
centro de seu estado. Há um “campo de consciência” e esse campo tem um governo
central. O elemento de estrutura, se for considerado, seria então referido ao
campo de consciência (isto é, o modo típico em que a pessoa pensa, sente,
responde às sensações e aos desafios da vida cotidiana). Essa estrutura
psíquica seria o resultado da atividade e da vontade do ego, mais ou menos como
a “lei do reino” constitui a expressão das decisões e da vontade do rei
autocrático, que é a única autoridade suprema em “sua” jurisdição.
O conceito acima referido, porém, implica muito do
que hoje pareceria uma psicologia antiquada e ingênua. Se o rei governa o reino
e lhe estrutura as múltiplas atividades por decretos de toda ordem, o que é que
governa o rei? O que o faz querer isto mais que aquilo? O que é que condiciona
suas escolhas e decisões?
A resposta é que o rei faz as novas leis, mas as
velhas leis fazem o rei. As tradições, os costumes ancestrais, os modelos
religiosos e culturais básicos e as “Imagens primordiais” da nação de que ele
se originou, como um filho condicionado por treinamento especial para tornar-se
rei – todos esses fatores estruturam a consciência do rei, e desse modo lhe
determinam basicamente, ainda que não exclusivamente, as decisões. Na maioria
dos casos, um rei é o produto da tradição e do estilo de vida nacionais muito
mais do que legislador que origina uma nova tradição ou estrutura de
comportamento social. Quando um rei, como o faraó egípcio Akh-na-ton, procura
alterar completamente a estrutura social-religiosa de seu reino, a tentativa
tem mais probabilidades de malograr, ou de ter vida curta, do que de ser
bem-sucedida; os velhos hábitos se impõem, demonstrando que têm mais fundamento
e poder que o próprio rei.
Outro enfoque da questão levará às mesmas conclusões.
A criança recém-nascida se compreende primeiramente como “eu” ou como “José”? A
julgar pela experiência, a criança costuma falar primeiramente na terceira
pessoa, quando se refere a si própria: “José fez isso, José quer aquilo”, antes
de enunciar bem claro “Eu quero” e mais ainda “Eu sou”. Aliás, a sensação
claramente consciente de “eu sou”, independentemente da qualificação
determinativa e condicionante “José”, o nome da pessoa, constitui a meta de um
processo de desenvolvimento espiritual muito longo e bastante difícil, e não o seu
início.
O ego, como uma forma particular de ser, é um fator
saturnino, pois Saturno é o senhor de todas as formas particulares de estrutura
que se definem por suas diferenças de todas as outras formas; portanto, por um
princípio de exclusão. “José da Silva” significa a soma total das diferenças de
uma pessoa em relação a todos os outros seres humanos. E essa soma de
diferenças é estabelecida – não só socialmente, mas também na consciência de
José da Silva, por seu “nome”. Nas modernas sociedades, ela normalmente é
estabelecida em dois níveis por dois nomes: um de família e outro pessoal. O
primeiro tem por fim estabelecer diferenças coletivas (de raça, família, etc.);
o outro, diferenças pessoais (individualidade).
Quando o homem diz a si mesmo ou a outros: “Eu sou o
José da Silva”, o que ele quer dizer realmente não é “Eu”, e sim que ele é
“José da Silva”. José da Silva é o ego, com suas diferenças individuais e de
grupo estruturadas. O nome é o símbolo do ego. Jung sabia disso muito bem
quando escreveu: “Por ego entendo um complexo de representações que... parece
possuir um grau muito elevado de continuidade e identidade.” Ele falou de
“complexo de ego”; e todo complexo é uma estrutura psíquica (em nosso sentido
do termo estrutura).
Mas o complexo de ego não é, como Jung aduziu, “o centro do meu campo de
consciência” do mesmo modo como não é o fator estrutural na
consciência. Por haver estrutura e ordem no campo de uma pessoa normalmente
amadurecida, o sentido de identidade estrutural permanente aparece. Esse
sentido de identidade estrutural permanente é o que o homem comum hoje em dia
conhece como o sentido de “eu”.
Na verdade, o ego representa uma condição de
constante envolvimento na tarefa de manter a estrutura do campo da consciência
intacta contra a pressão de fatores internos e externos que procuram alterar
essa estrutura, assim como o Estado procura eternamente implementar suas leis e
regulamentos e proteger suas fronteiras e seu prestígio.
O ego é, de fato, o equivalente do Estado nos
domínios da personalidade. O Estado pode ser controlado por um rei ou por
qualquer outro tipo de símbolo oficial de autoridade (como a Constituição dos
Estados Unidos); o ego pode desenvolver ou deixar de desenvolver um sentido de
gerir ou governar o sentimento de “eu”. Em qualquer dos casos, o fator
essencial permanece sendo o Estado como um todo; e esse Estado, sendo um fator
estrutural, se encontra em ação em toda parte. O que se considera uma pessoa
egocêntrica e muito voluntariosa é muito parecido com um Estado policialesco. O
fator estrutural domina e tende a reprimir toda parte do campo da consciência,
regulando toda função ou lançando todo pensamento ou sentimento não desejados
para as trevas exteriores do inconsciente – para o exílio ou para o campo de
concentração, conforme o caso. O Estado policialesco em geral tem um ditador
oficial; mas esse ditador é um símbolo e um sintoma muito mais do que uma causa
– salvo em casos especiais que logo estudaremos. Ele se transforma, seja como
for – quando não o tenha sido desde o princípio – num escravo das estruturas
que ele mesmo desenvolveu e, de fato, que precisou desenvolver.
A pessoa comum não pode ser comparada com um Estado
totalitário e policialesco. Ela é, em geral, um todo muito mal-integrado, em
que não há nenhum poder central efetivo forte. Nela, as necessidades ou impulsos psíquicos (comparáveis a
“quotas especiais”, monopólios, cartéis, organizações eclesiásticas,
sindicatos, etc.) lutam pela posição de autoridade central. O “eu” que na
verdade é indicado na declaração “eu sou o José” é mais um símbolo do que uma
realidade experimentada. Para o psicólogo, é o alvo obscuramente adivinhado de
um processo de integração pessoal e talvez de ulterior transfiguração; ao passo
que para o esoterista é a imagem refletida de uma realidade transcendente.
O eu no enunciado “eu sou José da Silva” não é a
semente de Deus. Na maioria dos casos será, quando muito, a vaga sensação de
uma estabilidade e permanência interior obscuramente pressentidas. É uma
intuição incerta do que poderia ser a divindade no cerne das experiências mais
elevadas e mais integradas no viver real de José da Silva. O objetivo principal
de todos os ensinamentos verdadeiramente espirituais é fortalecer essa obscura
intuição-sentimento em consequência de estabelecê-la como um conceito, como um
corolário intelectual da ideia a ela relacionada da existência de Deus. “Deus
é; eu sou” – estes são enunciados correlatos. Se não há nenhum “Deus”
universal, o “eu” espiritual existiria em contraste absoluto e essencialmente
sem significado com um universo estranho e incompreensível; e se não há nenhum
“eu” como uma expressão potencialmente completa da divindade, a vida humana é
uma tragédia insuportável que não leva a coisa alguma.
Em termos de simbolismo astrológico, a Estrela, que
ainda é para o homem na Estrada Iluminada um fator transcendental, é um foco ou
uma lente através da
qual o ser universal de Deus radia como luz e como poder. Quando os passos
anteriormente definidos sobre a Estrada Iluminada tenham sido dados
eficazmente, a sensação amorfa de “eu” dentro da consciência de José da
Silva transforma-se numa percepção cada vez mais clara de um “Ele”
formado. A imagem de Deus é vista dentro da consciência, transportada, por
assim dizer, pelo Raio da Estrela.
Para o espírito universal e que tudo penetra, tudo
quanto acontece uma vez aconteceu uma vez por todas num mundo “intemporal”. No
entanto, para todo homem que funcione conscientemente num mundo de ciclos e
duração, o evento do nascimento divino – a incorporação do espírito na
semelhança de Deus – é uma potencialidade em processo de se tornar realidade.
E quanto ao José da Silva? Ele se torna mãe do Deus
vivente que está se agitando dentro de sua consciência. Um mistério está sendo
celebrado dentro dele; um estranho e em geral desconcertante ritual de
gestação. José da Silva agora hesita ao dizer “Eu sou o José da Silva”. Poderá
ele ao menos dizer: “Eu sou”?
Para ser plenamente experimentado, o “eu” teve que
ser separado completamente da qualificação “José da Silva”. Um processo
negativo: um “não isto, não aquilo...” relativo ao condicionamento terreno, à
hereditariedade, a pressões ambientais, a necessidades físicas – na verdade, a
todo poder exercido pelo ego estrutural e sua constante concentração sobre o
problema de manter essa estrutura da personalidade sob todas as circunstâncias
possíveis ou sua prestação de atenção a esse problema. O indivíduo José da
Silva teve que ficar anônimo antes de poder efetivamente sentir eu sou.
Até começar o novo estágio. Até que Saturno falasse
na Estrada Iluminada. Até que a Estrela viesse a ser conhecida dentro da
consciência: “Ele!” Nesse estágio, o místico proclama: “Deus vive em mim.”
Nesse estágio, o grande prodígio é: Ele sou eu. O sujeito eu tornou-se a expressão de uma consciência
mais vasta, de um organismo mais cósmico. O “Eu” passou a ser uma expressão
d”Ele”. Nesse momento o “eu” tem seu nascimento como uma realidade orgânica,
viva, e não meramente como sentimento-intuição de algum poder transcendente que
tem de permanecer informe.
Eu O sou – e isso sou eu. O ser do indivíduo que era
conhecido de si mesmo e dos outros como José da Silva está agora restabelecido,
reincorporado em germe na compreensão “Eu O sou”. Algum dia, ainda remoto, a
personalidade transfigurada será capaz de dizer, com Jesus: “Eu O sou”.
Tríptico Astrológico, D. R.
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